Em novembro deste ano, com a realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30) na cidade de Belém, os olhos do mundo se voltam para o estado do Pará e examinam de perto a sustentabilidade de tudo que ele produz. Como ex-CEO da VALE, embaixador junto à União Europeia e ex-presidente do Instituto Brasileiro do Café – IBC, me permito fazer algumas reflexões acerca das fragilidades e ameaças que sem dúvida enfrentaremos num momento em que as inquestionáveis virtudes ambientalistas do país podem e devem ser exaltadas.
Conheço muito bem a importância e a cadeia produtiva do Pará, onde, apenas para citar um exemplo, a Serra de Carajás abriga uma das maiores e mais estratégicas jazidas de minério de ferro do mundo. As cadeias vegetal, agrícola e pecuária do estado também têm grande valor econômico e social, apesar de serem em certos casos objeto de veementes críticas a práticas predatórias ao meio ambiente. E aqui toco num ponto sensível que envolve toda a cadeia de produção extrativista amazônica: o impacto social do trabalho infantil, especialmente significativo no caso do açaí que, simbolizando os mistérios e sabores da região, é hoje consumido nos quatro cantos do planeta.
Até por gosto pessoal depois que o conheci em minhas numerosas visitas ao Pará, passei a me interessar pelo açaí, de que o estado é de longe o maior produtor nacional. Há séculos, a frutinha roxa rica em proteínas, fibras, antioxidantes, vitaminas e minerais vem sendo importante complemento nutricional para os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e moradores das cidades da Amazônia. Na década de 1980, seu consumo, graças ao gosto peculiar e benefícios para a saúde, começou a se estender para o resto do Brasil e, por volta de 2000, atingiu o mercado externo, em especial Estados Unidos, Europa e Austrália, tanto na forma de polpa congelada quanto em produtos processados como sucos, sorvetes e suplementos alimentares. Com isso, a cadeia global do açaí movimenta atualmente muitos bilhões de dólares por ano.
Entretanto, fora da Amazônia poucos têm ideia de que, na base dessa imensa estrutura de produção e comercialização, encontramos um gravíssimo problema social: a exploração sistemática do trabalho infantil. Com efeito, embora exista um número crescente de cultivos dos açaizeiros em escala comercial, a maior parte do “ouro roxo” é colhida nas palmeiras altas e frágeis que são encontradas nos quintais das casas ou em meio à floresta. E cabe sobretudo a meninos, a partir dos 8 anos, escalar o fino tronco com a ajuda apenas da peconha – um simples laço de corda ou de pedaço de saco que lhes permite apoiar os pés de encontro ao caule e subir usando a força de seus braços e pernas. Levam nessa árdua ascensão, que pode chegar a 20 metros, uma faca afiada com que vão cortar os grandes cachos de açaí que pesam em média mais de 5 quilos.
No passado, quando o fruto era consumido unicamente pela própria família, admitia-se tal função dos filhos mais novos como um fato cultural perfeitamente aceitável. Hoje, com o aumento da demanda e o crescente consumo mundial, essa prática familiar de subsistência tornou-se um modelo de operação com graves consequências sociais, tais como a evasão escolar e a exposição ao risco de sérios acidentes. O inevitável resultado é um índice altíssimo de analfabetismo, que contribuirá para que se reproduzam as precárias condições econômicas e sociais dos seus pais.
Mas, se tal situação é praticamente desconhecida pela maioria dos apreciadores da frutinha, já foi objeto de reportagens extremamente críticas em importantes órgãos da mídia internacional, como o Washington Post e a CNN, tendo o governo norte-americano incluído o açaí na lista de itens produzidos com trabalho infantil. Não bastasse isso, as dezenas de milhares de visitantes que deverão estar presentes à CP 30 em Belém, pertencentes às áreas governamentais e ONGs mais interessadas na questão ambiental, certamente terão curiosidade em se informar sobre os padrões de sustentabilidade da produção e comercialização do açaí caso já conheçam a iguaria ou a provem pela primeira vez durante o evento. Com a experiência que tenho de situações semelhantes, isso significa um risco muito grande de que o produto venha a ser objeto de boicotes de ativistas preocupados com os direitos humanos ou mesmo de embargos de importação impostos por governos pressionados por tais grupos.
Como em outras situações análogas ao envolvimento infantil no trabalho extrativista que são observadas mundo afora, não será fácil superar uma condição degradante que tem fundas raízes culturais e, em especial, está vinculada à extrema pobreza da maior parte das comunidades em que ela ocorre: na verdade, o pagamento recebido pelos meninos e meninas, apesar de ser uma fração insignificante do preço final do produto, constitui complemento essencial da renda familiar, hoje garantida apenas pelo Bolsa Família. A essas dificuldades soma-se o fator geográfico, uma vez que muitas das áreas onde se observa o trabalho infantil e muitas das escolas da região só podem ser alcançadas com o uso de canoas e outros tipos de embarcação.
Não obstante, é hora de que os três níveis de governo – que conhecem perfeitamente essa realidade insustentável – se unam para tomar medidas concretas em vez de fazerem ocasionais “inspeções” de valor apenas midiático uma vez que, durante a COP 30, os olhares de todos estarão voltados para esse tema entre outras questões suscetíveis de reparos dos círculos ambientalistas.
O governo, em particular na esfera estadual através do governador Helder Barbalho e, na esfera federal, através do Ministério do Meio Ambiente que tem uma amazônida à sua frente, a ministra Marina Silva, não pode virar as costas a esse enfrentamento. Ao contrário, tem uma oportunidade ímpar de propor ações e soluções concretas, caso se queira que as conquistas do Brasil e do Pará na área da sustentabilidade não sejam empanadas durante a COP 30 por críticas contundentes. Por isso, deveriam nos próximos meses formular um plano efetivo para a erradicação do trabalho infantil, valendo-se para tanto dos conhecimentos dos setores acadêmicos e dos empresários envolvidos nessa cadeia produtiva. E apresentar tal plano na Conferência como um trunfo de suas administrações.