A história da delação premiada no Brasil é repleta de abusos. Para ilustrar isso basta rememorar os tempos da extinta “lava jato”, em que réus eram presos com a promessa velada da liberdade pós-delação.
Houve, porém, a atuação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça para a formação de uma jurisprudência que garantisse os direitos do delatado e o devido processo legal. Um dos últimos movimentos nesse sentido veio do STJ, que preservou o sigilo entre cliente e advogado ao anular a delação de um advogado em ação penal contra uma empresa de transporte para o qual ele trabalhava. A decisão se deu no bojo do HC 179.805.
Esse entendimento foi um importante sinal de que as cortes superiores seguem atentas a abusos relacionados às delações e também de que reconhece e privilegia o advogado no sistema de Justiça.
O STJ também colaborou com o aperfeiçoamento do instituto ao definir, no REsp 1.728.847, a discricionariedade do órgão julgador na redução de pena diante da colaboração e no, HC 354.800, a impossibilidade de o magistrado emitir juízo de valor ao rejeitar acordo.
O STF também foi decisivo nesse movimento de combate a abusos. Foi da mais alta corte de Justiça do país, por exemplo, a decisão que garantiu ao delatado o direito de se pronunciar por último nas alegações finais no já célebre julgamento do HC 157.627, em que prevaleceu a tese do criminalista Alberto Zacharias Toron.
O Supremo também foi fundamental para combater o desvirtuamento da prisão preventiva como elemento de barganha para delação premiada. O entendimento do ministro Dias Toffoli que prevaleceu no julgamento do Habeas Corpus 127.483, por exemplo, preservou a essência colaborativa da delação premiada.
Falha reiterada
A verdade, contudo, é que apesar dos esforços jurisprudenciais do Supremo e do STJ, o instituto da delação premiada segue comprometido por um aspecto comportamental que afeta todo o sistema de Justiça: vazamentos recorrentes.
Tanto no passado recente como no presente as delações premiadas costumam vazar para a imprensa e isso tem uma série de desdobramentos que as comprometem. Primeiramente, é necessário lembrar que aqui não se discute o papel da imprensa. Não é obrigação de nenhum jornalista preservar o sigilo de uma delação premiada. Pelo contrário, se aferir que existe interesse público no relato, tem mesmo que publicar.
Fica claro que a responsabilidade pelos vazamentos recorrentes não é da imprensa, mas das partes envolvidas no processo e, sobretudo, de agentes públicos que compõem o sistema de Justiça.
Nos doloridos anos do lavajatismo a comunidade jurídica viu dia após dia vazamentos de delações premiadas em ocasiões que, deliberadamente, pareciam obedecer um calendário político. Manchetes encomendadas e escândalos oportunistas.
A lógica aqui não era jurídica, mas política. A delação premiada, vale lembrar, está intimamente ligada ao instituto da plea bargain — um instituto que, assim como a delação, foi implementado à fórceps no Direito Brasileiro. Tanto que o ministro Nefi Cordeiro, do STJ, chegou a afirmar que a colaboração premiada estava sendo transformada em plea bargain sem o apoio da lei.
Delação transnacional
Todo esse histórico é importante para lembrar que o costume de vazar delações premiadas no sistema de Justiça brasileiro não respeita fronteiras. Um dos casos mais recentes envolve o mafioso italiano Vincenzo Pasquino, considerado o maior intermediário do tráfico de cocaína da América do Sul para os clãs mafiosos da ‘Ndrangheta.
Em delação a autoridades italianas ele entregou o que supostamente seriam codinomes de traficantes de drogas ligados ao Comando Vermelho e ao Primeiro Comando da Capital (PCC). A informação foi veiculada em cadeia nacional de televisão e na internet com toda a pompa merecida, afinal, se trata do testemunho de um notório criminoso italiano sobre outros notórios criminosos brasileiros.
As informações haviam sido repassadas pela Justiça italiana a investigadores brasileiros.O caminho que levou esse tipo de conteúdo ao noticiário, contudo, é incerto. A revelação dos codinomes utilizados por criminosos brasileiros é importante porque, na Europa, já foi possível descriptografar parte da comunicação do mafioso com os traficantes brasileiros.
Pasquino foi extraditado do Brasil em fevereiro deste ano e decidiu delatar para a Justiça italiana as ligações da máfia com facções criminosas brasileiras para o transporte de cocaína a partir de portos brasileiros.
A delação do mafioso foi comunicada à Procuradoria-Geral da República pelo chefe da Direção Nacional Antimáfia e Antiterrorismo da Itália. Na PGR brasileira, veja bem, o caso tramita sob sigilo como forma de proteger a vida e a integridade do cidadão italiano.
Que espécie de sigilo é esse que faz informações sensíveis se tornarem pauta da imprensa em horário nobre. Para se ter ideia, um trecho do ofício sobre o acordo de delação italiano foi publicado na imprensa.
O sigilo, ou melhor dizendo, a falta dele, segue sendo o calcanhar de Aquiles do instituto da delação premiada no Brasil. Vale lembrar que estamos tratando de matéria penal que envolve criminosos acostumados a recorrer a violência para preservar seus negócios.
No limite, o vazamento desse ofício serve para colocar em risco a vida do delator italiano. A quem esse tipo de vazamento interessa? Spoiler: esse tipo de prática serve mais às autoridades em busca de fama do que à efetiva concretização da Justiça.