Nos dias 10 e 11 de fevereiro de 2021, uma história chamou a atenção da mídia mundial e foi noticiada em mais de 50 países, por todos os continentes, inclusive no The Sun e New York Post. Era a primeira vez que irmãs gêmeas transexuais passavam pela cirurgia de redesignação sexual ao mesmo tempo no mundo.
O ineditismo ainda permanece um ano após o caso. Mais do que isso, elas também se tornaram as mais jovens a fazerem a cirurgia no país, aos 19 anos. Isso só foi possível porque uma resolução do Conselho Federal de Medicina reduziu de 21 para 18 anos a idade para o procedimento.
A cirurgia aconteceu em Blumenau e foi realizada pelos médicos José Carlos Martins Junior e Cláudio Eduardo de Souza, que ganharam repercussão inclusive no meio médico. Responsáveis pela Transgender Center Brazil, clínica particular especializada no atendimento a transgêneros, a dupla já realizou mais de 500 cirurgias de redesignação sexual, se tornando referência quando o assunto é população trans. José Carlos Martins também é autor do único livro sobre o tema no Brasil, que fala da cirurgia íntima.
E não apenas correu tudo bem com a operação das gêmeas Sofia Albuquerck e Mayla Phoebe de Rezende, como três dias após o procedimento elas receberam alta. “Foi um sonho realizado”, disseram na época.
De lá pra cá vida normal para as meninas do interior de Minas Gerais. Ambas cresceram em Tapira e conhecem bem o que é o preconceito enfrentado pelas pessoas trans no país. Bullying, piadinhas, dificuldade de ter a identidade social reconhecida são apenas alguns dos casos enfrentados por elas quando mais jovens, e também por milhares de pessoas trans no Brasil.
Segundo um estudo do Grupo de Estudos em Saúde Transgênero (Gestrans) da faculdade de medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp), divulgado em 2020, o país tem cerca de 3 milhões de pessoas que se declaram trans ou não-binárias — que não se identifica com os gêneros feminino ou masculino. Além de conviver com o preconceito, o que mais assombra estas pessoas é o medo de perder a vida.
O Brasil mantém a posição de país que mais mata transexuais no mundo, à frente de México e Estados Unidos, segundo dados de novembro de 2021 da ONG Transgender Europe (TGEU). O relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) aponta que, em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas no país, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e 5 homens trans e pessoas transmasculinas.
Como não há um dado oficial sobre o tema, a pesquisa é feita a partir de informações encontradas em órgãos públicos, organizações não-governamentais, reportagens e relatos de pessoas próximas das vítimas.
Inspiração para outras trans
As gêmeas Sofia e Mayla reconhecem que o apoio recebido da família e o aporte financeiro para a cirurgia, cujo avô vendeu uma casa para que elas fossem operadas, não é a realidade da maioria.
– Infelizmente pelo SUS tudo é muito demorado, principalmente para as pessoas trans. Nós não queríamos esperar mais e procuramos o atendimento particular”, explicou Mayla.
No SUS a fila de espera pode passar de cinco anos e o Ministério da Saúde sequer tem um relatório sobre a quantidade de pessoas nesta fila.
Para os médicos que operaram as gêmeas a parcela de pessoas que vai se submeter de fato ao procedimento de redesignação sexual é muito pequena, algo em torno de 5%.
Segundo José Carlos Martins, os avanços dos últimos anos também contribuem para isso, principalmente o reconhecimento do nome social. “Estas pessoas querem ser reconhecidas do modo como se veem, e isso não tem nada a ver com o órgão sexual”, explicou.
Antes do decreto nº 8.727 de abril de 2016, que trata sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais, a cirurgia era obrigatória para que a pessoa pudesse modificar seus documentos. Hoje, felizmente, isso não é mais necessário.
O caso de sucesso das irmãs segue inspirando meninas trans Brasil afora. Para Mayla, que é Técnica de Enfermagem e cursa Medicina na Argentina, e Sofia, que faz Engenharia Civil em Minas Gerais, a exposição de suas histórias abriu as portas para outras pessoas procurarem ajuda e se realizarem pessoalmente. Segundo Sofia, a aceitação das pessoas sobre o caso delas trouxe mais segurança e coragem para outras trans fazerem a cirurgia.
– Até hoje somos procuradas para falar da cirurgia. Com a exposição muitas meninas vieram procurar a gente para saber como é todo o procedimento. Isso ajudou a aumentar a procura da cirurgia, principalmente na clínica onde efetuamos a operação. Meio que conversando com as meninas e tirando dúvidas, as deixamos mais seguras sobre como é feito todo o procedimento, contou Sofia.